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séculos fostes a cabeça do país e o orgulho da nação, durante séculos e séculos,
quando em horas de crise nacional, de aflição colectiva, o nosso povo habituou-se
a virar
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os olhos para este burgo, para estas colinas, sabendo que daqui lhe acudiria o
remédio, a palavra consoladora, o rumo certo para o futuro. Haveis atraiçoado a
memória dos vossos antepassados, eis a dura verdade que atormentará para todo
o sempre a vossa consciência, eles ergueram, pedra a pedra, o altar da pátria, vós
decidistes destruí-lo, que a vergonha caia pois sobre vós. Com toda a minha alma,
quero acreditar que a vossa loucura será transitória, que não perdurará, quero
pensar que amanhã, um amanhã que rezo aos céus não se faça esperar
demasiado, o arrependimento penetrará docemente nos vossos corações e
voltareis a congraçar-vos com a comunidade nacional, raiz de raízes, e com a
legalidade, regressando, como o filho pródigo, à casa paterna. Agora sois uma
cidade sem lei. Não tereis aqui um governo para vos impor o que deveis e o que
não deveis fazer, como deveis e como não deveis comportar-vos, as ruas serão
vossas, pertencem-vos, usai-as como vos apeteça, nenhuma autoridade
aparecerá a cortar-vos o passo e a dar-vos o bom conselho, mas também, atentai
bem no que vos digo, nenhuma autoridade virá proteger-vos de ladrões,
violadores e assassinos, essa será a vossa liberdade, desfrutai dela. Talvez
imagineis, ilusoriamente, que, entregados ao vosso alvedrio e aos vossos livres
caprichos, sereis capazes de organizar melhor e melhor defender as vossas vidas
que o que em favor delas nós havíamos feito com os métodos antigos e as antigas
leis. Terrível equívoco o vosso. Antes cedo que tarde sereis obrigados a tomar
chefes que vos governem, se é que não serão eles a irromper bestialmente do
caos inevitável em que ireis cair, e impor-vos a sua lei. Então vos dareis conta da
dimensão trágica do vosso engano. Talvez venhais a rebelar-vos como no tempo
dos constrangimentos autoritários, como no ominoso tempo das ditaduras, mas,
não tenhais ilusões, sereis reprimidos com igual violência, e não sereis chamados
a votar porque não haverá eleições, ou talvez, sim, as haja, mas não serão
isentas, limpas e honestas como as que haveis desprezado,
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e assim será até ao dia em que as forças armadas que, comigo e com o governo
da nação, hoje decidiram abandonarmos ao destino que havíeis escolhido, tenham
de regressar para vos libertar dos monstros por vós próprios gerados. Todo o
vosso sofrimento haverá sido inútil, vã toda a vossa teimosia, e então
compreendereis, demasiado tarde, que os direitos só o são integralmente nas
palavras com que tenham sido enunciados e no pedaço de papel em que hajam
sido consignados, quer ele seja uma constituição, uma lei ou um regulamento
qualquer, compreendereis, oxalá convencidos, que a sua aplicação desmedida,
inconsiderada, convulsionaria a sociedade mais solidamente estabelecida,
compreendereis, enfim, que o simples senso comum ordena que os tomemos
como mero símbolo daquilo que poderia ser, se fosse, e nunca como sua efectiva
e possível realidade. Votar em branco é um direito irrenunciável, ninguém vo-lo
negará, mas, tal como proibimos às crianças que brinquem com o lume, também
aos povos prevenimos de que vai contra a sua segurança mexer na dinamite. Vou
terminar. Tomai a severidade dos meus avisos, não como uma ameaça, mas
como um cautério para a infecta supuração política que haveis gerado no vosso
seio e em que vos estais revolvendo. Voltareis a ver-me e a ouvir-me no dia em
que tiverdes merecido o perdão que, apesar de tudo, estamos inclinados a
conceder-vos, eu, vosso presidente, o governo que haveis elegido em melhores
tempos, e a parte sã e pura do nosso povo, essa de que neste momento não sois
dignos. Até esse dia, adeus, e que o senhor vos proteja. A imagem grave e
compungida do chefe do estado desapareceu e em seu lugar tornou a surgir a
bandeira hasteada. O vento agitava-a de cá para lá, de lá para cá, como uma
tonta, ao mesmo tempo que o hino repetia os bélicos acordes e os marciais
acentos que haviam sido compostos em eras passadas de imparável exaltação
patriótica, mas que agora pareciam soar a rachado. Sim senhor, o homem falou
bem, resumiu o mais velho da família,
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e há que reconhecer que tem toda a razão no que disse, as crianças não devem
brincar com o lume porque depois é certo e sabido que mijam na cama.
As ruas, até aí praticamente desertas, fechado o comércio quase todo, quase
vazios os autocarros que passavam, encheram-se de gente em poucos minutos.
Os que tinham ficado em casa debruçavam-se às janelas para ver o concurso,
palavra que não quer dizer que as pessoas caminhassem todas na mesma
direcção, eram antes como dois rios, um a subir, outro a descer, e acenava-se de
um lado para o outro como se a cidade estivesse em festa, como se fosse feriado
municipal, por ali não se viam ladrões nem violadores nem assassinos, ao
contrário dos mal-intencionados prognósticos do presidente fugido. Em alguns
andares dos prédios, aqui, além, estavam fechadas as janelas, com as persianas,
quando as havia, melancolicamente descidas, como se um doloroso luto tivesse
ferido as famílias que ali residiam. Nesses andares não se tinham acendido as
alertas luzes da madrugada, quando muito os residentes teriam espreitado por
trás das cortinas com um aperto no coração, ali vivia gente com ideias políticas
muito firmes, pessoas que tendo votado, quer na primeira eleição quer na
segunda, nas suas preferências de toda a vida, o partido da direita e o partido do
meio, não tinham agora qualquer motivo para festejar, e, bem pelo contrário,
temiam o desencadear de ataques da massa ignara que cantava e gritava nas
ruas, o rebentar das sacrossantas portas do lar, a conspurcação das recordações
de família, o saque das pratas, Cantem, cantem, que logo choram, diziam uns aos
outros para dar-se coragem. Quanto aos votantes do partido da esquerda, aqueles
que não estavam a aplaudir das janelas é porque tinham descido à rua, como
facilmente se pode demonstrar, nesta em que nos encontramos, por uma bandeira
que de vez em quando, a modos de tomar o pulso, assoma por cima do caudaloso
rio de cabeças. Ninguém foi trabalhar. Os jornais esgotaram-se nos quiosques,
todos eles
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